terça-feira, 15 de junho de 2010

Sola Scripturae! Quae Scripturae?

Versões Bíblicas:
por Isaías Lobão Junior em 22 de dezembro de 2008


Existem muitas versões da Bíblia em português. Quem visita uma boa livraria evangélica pode conferir o que estou dizendo. Bíblias de vários tamanhos, formatos e versões. Porém, alguns cristãos não acreditam que essa diversidade seja benéfica. Muitos crentes sinceros defendem a primazia de uma versão bíblica sobre as outras com o argumento que as preferências textuais das novas versões enfraquecem a fé cristã.

Grande parte desses irmãos importou uma discussão teológica anglo-americana para nosso país. Lá existe um debate acirrado entre dos defensores da (boa, mas não infalivel) Authorized King James Version (1611) e os defensores das modernas versões, tais como American Standard Version (1901), New International Version (1978) e a English Standard Version (2001).

Entre nós a versão defendida como sendo a “única versão autorizada” é a versão de Almeida conhecida como Almeida Corrigida Fiel (ACF) publicada pela Sociedade Bíblica Trinitariana. Porém, eu entendo que a inspiração bíblica diz respeito aos autográfos, os quais pela providência de Deus, pode-se determinar com grande exatidão a partir de manuscritos disponíveis. A minha opinião é que não existe uma tradução "autorizada". As diversas versões bíblicas são a Palavra de Deus, como é dito na Declração de Chicago, na medida em que fielmente representam o original.

A sábia Confissão de Fé de Westminster afirma o seguinte:
Capítulo I. Da Sagrada Escritura. Parágrafo VIII. O Velho Testamento em Hebraico
(língua vulgar do antigo povo de Deus) e o Novo Testamento em Grego (a língua
mais geralmente conhecida entre as nações no tempo em que ele foi escrito),
sendo inspirados imediatamente por Deus e pelo seu singular cuidado e
providência conservados puros em todos os séculos, são por isso autênticos e
assim em todas as controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como
para um supremo tribunal.

A Declaração de Chicago sobre Inerrância da Bíblia afirma o seguinte no artigo X:
Afirmamos que, estritamente falando, a inspiração diz respeito somente ao texto
autográfico das Escrituras, o qual, pela providência de Deus, pode-se determinar
com grande exatidão a partir de manuscritos disponíveis. Afirmamos ainda mais
que as cópias e traduções das Escrituras são a Palavra de Deus na medida em que
fielmente representam o original.
Além de tudo isso, não há uma passagem na Bíblia que me diz que somente uma tradução é a correta. Não encontro uma passagem bíblica que me diz que a Bíblia Almeida Corrigida Fiel (ACF) é a melhor ou é a única Bíblia "santa". Não existe nenhum verso que me diz como Deus preservará sua palavra, assim como não existe nenhuma autorização bíblica para afirmar qual versão é a verdadeira. Os argumentos devem ser fundamentados na crítica textual e na história da transmissão do texto.

Os estudiosos bíblicos desenvolveram através dos anos, certos critérios, buscando refazer os caminhos que um texto tomou até chegar a suas mãos. Este estudo é chamado de crítica textual. “A crítica textual não se interessa pelo sentido do texto, não é análise literária do texto ou coisa semelhante. Apenas procura verificar a confiabilidade das cópias do texto que chegaram até nós e reconstituir o texto na sua forma mais confiável” [1].

Para a reconstituição do texto original as variantes textuais devem ser julgadas dentro de três critérios:

1) O critério das evidências externas: As evidências externas são os manuscritos mais antigos e confiáveis atestados por diversos testemunhos, tais como, as citações dos Pais da Igreja, antigas versões, lecionários, outras famílias de manuscritos e a distribuição geográfica dos textos.

2) O critério probabilidade intrínseca: Este critério está baseado no estilo e vocabulário do autor através de cada livro e na teologia conhecida do autor nas passagens paralelas em outros livros.

3) O critério da probabilidade de transcrição: Ao analisar as variantes pela forma como eram transmitidos os textos antigos, chega-se aos seguintes critérios.

          a. A leitura mais difícil deve ser preferida, porque a tendência dos copistas era de facilitar a leitura.
          b. A diferença nas passagens paralelas, este critério é usado especialmente nos evangelhos. Porque a  tendência dos copistas era de harmonizar as passagens paralelas.
          c. A leitura mais curta sempre é preferível, porque a tendência dos copistas era de acrescentar detalhes.
          d. Deve-se escolher a variante que melhor se harmonize com o livro em questão.      
          e. Deve-se escolher a leitura que melhor explique a origem das outras variantes textuais.

A partir destes critérios, vamos analisar os argumentos que defendem a preferência que alguns irmãos fazem pela ACF. texto grego usado pela ACF é conhecido como Textus Receptus. É o texto do Novo Testamento representado pela terceira edição de Stephanus, de 1550, embora a expressão só houvesse surgido com Elzevir, em 1633. Em sua maior parte, esse texto grego é baseado em meia dúzia de manuscritos muito tardios (nenhum deles mais antigo do que o século XII d.C).

O chamado Texto Crítico foi usado na revisão da obra de Almeida conhecida como Revista e Atualizada e também foi utilizado na maioria das outras versões, como NVI, NTLH, entre outras. Ele é formado pelos cinco maiores MSS Unciais (conhecido por suas letras, Aleph, A, B, C, D), todos eles datados do quarto ou quinto século, como também as antigas versões e evidências patrísticas. Dois MSS em particular, B e Aleph, são muito importantes. Ambos vieram do quarto século.

Quais são os argumentos que confirmam a tese que o Texto Crítico é melhor do que o Textus Receptus? Apresento aqui três argumentos,[2] que considero conclusivos para a aceitação do Texto Crítico:

1) O Texto Bizantino (isto é, o grupo de MSS gregos por trás do Textus Receptus) não foi citado por qualquer Pai da Igreja antes de 325 d.C., enquanto que o Texto Alexandrino estava amplamente representado antes daquele período.

2) Em diversas partes, foi demonstrado que o Texto Bizantino era dependente de duas tradições antigas, o Alexandrino e Ocidental. Os primeiros editores do Texto Bizantino combinaram, o teor do Alexandrino e tradições Ocidentais. Segundo alguns, o Alexandrino combinou leituras Ocidentais e Bizantinas, porém, isso não poderia ser demonstrada a dependência do Alexandrino com as leituras Ocidentais e Bizantinas.

3) O Texto Bizantino, em exame mais íntimo, demonstrou ser inferior em seu teor, com a tendência de adicionar ou esclarecer passagens.

Uma forma de ilustrar o que estou dizendo é a análise de I João 5.7-8, a famosa Comma Johanneum. Segundo a NVI: “Há três que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue; e os três são unânimes.” O Textus Receptus acrescenta um longo trecho, aqui traduzido segundo a versão ACF: “Porque três são os que testificam no céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na terra: o Espírito, e a água e o sangue; e estes três concordam num.”

Acredito que esse adendo é espúrio e não deveria constar em nenhuma versão da Bíblia. Várias razões sustentam minha posição. (1) Esta passagem não é encontrada em nenhum manuscrito grego antigo, exceto em oito manuscritos tardios, datados em sua maioria do décimo-sexto século! (2) A passagem não é citada por nenhum dos antigos Pais Gregos, que certamente a teriam usado nas controvérsias trinitarianas com os sabelianos e arianos. (3) Esta passagem também nunca foi encontrada nos manuscritos das antigas versões (siríaca, copta, armênia, etiópica, árabe ou eslavônica).[3]

Portanto, eu entendo que defender a ACF como a única versão verdadeira é uma falácia. Acredito que as diversas versões evangélicas da Bíblia são importantes auxílios para o entendimento correto da mensagem da salvação em Cristo. Não creio que ninguém possa medir a ortodoxia de um crente apenas pela versão bíblica que ele usa.

Se você quiser ampliar seus conhecimentos nessa área específica sugiro a leitura de um artigo que analisa mais profundamente esta questão. Ele foi escrito pelo Renato Fontes e está hospedado no site Monergismo. Veja aqui.

--------------------------------------------------------------------------------
[1] KONINGS, Johan. A Bíblia, sua história e leitura: uma introdução. p.236

[2] Os argumentos foram baseados em: WALLACE, Daniel B. The Conspiracy Behind the New Bible Translations. In: http://www.bible.org/page.asp?page_id=706.

[3] METZGER, Bruce M. A Textual Commentary on the New Testament (2nd edition), pp. 647-648.

 _______________________________

Obs.:Esse texto demostra parte das minhas convicções acerca da doutrina das Sagradas Escrituras, ainda na "pretenção" de atender a (minha) necessidade de definições mais claras.

Um outro material interessantíssimo pode ser visto aqui, trata-se de um trabalho apresentado pelo, então aluno, Isaías Lobão Junior, como texto exigido para a matéria de História das Religiões, na Universidade de Brasília. Posteriormente foi apresentado em forma de palestra no encontro da CEHILA (Comissão de História da Igreja na América Latina) entidade que coordena historiadores e pesquisadores interessados na história eclesiástica em nosso continente.

O texto foi levemente alterado.

11 comentários:

  1. Pr. Esli,

    estava devendo-lhe uma visita, mas somente agora pude fazê-la com mais propriedade.

    Primeiro, parabenizo-o pela iniciativa de se tornar um "autorwebiano" [rsrs]. Sei que Cristo será exaltado e glorificado através da sua obra.

    Segundo, um puxão-de-orelhas. Somente na semana passada, através do blog do Ricardo Mamedes, tomei conhecimento da existência do "A Cruz, on-line!". Poxa, não custava avisar!

    Terceiro, propriamente sobre o texto do pr. Isaías, discordo. Já tive Bíblias de várias versões em casa e, atualmente, mantenho apenas a ACF. Por que? São vários os motivos, mas especialmente pela ACF utilizar-se dos textos da maioria das cópias disponíveis. Parece-me que quase 90% das cópias são oriundas do texto Massorético e do texto Receptus. Bem, muitos alegarão que as cópias dos textos sinaíticos ou ecléticos são mais antigas, mas não seria exatamente por sua não utilização (o pouco manuseio, implicando na sua não adoção entre as igrejas) que elas chegaram até nós?

    Outro ponto é que, se Deus conservou apenas os originais, os autógrafos, o que temos agora? Se as cópias não são infalíveis, inerrantes, e divinamente inspiradas (não digo todas. A NTLH é uma aberração. Não dá para chamá-la de Bíblia), o que temos não é a Bíblia. É um arremedo dela.

    Dizer que Deus conservou apenas os autógrafos, e como eles não mais existem, representa dizer que Deus não conservou a Bíblia. Ao meu ver, Deus é poderoso para conservar tanto um como o outro, e creio, firmemente, que Ele conservou as cópias também, igualmente infalíveis, inerrantes e divinamente inspiradas.

    Escrevi algo sobre o assunto no meu blog que pode ser lido em http://kalamo.blogspot.com/2009/08/sua-biblia-merece-confianca.html

    Mais um questionamento: se as cópias e traduções não são infalíveis, como saber se o original é?

    Cristo o abençoe, meu irmão!

    Grande abraço!

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  3. Jorge, meu camarada,

    1°. Obrigado, abrir o blog eu devo mais a você do que imagina.

    2°. O puxão deve ser em vc, e não em mim, dá uma olhada em seus e-mail para ver se não tem um aviso da abertura do blog.

    3º. O caso não é de preservação mas de fideliade aos manuscritos. O texto é claro das nossas (ou minhas) razões para se adotar o TC. Veja, o âmago do post, é que o TC e o TR devem ser utilizados e que qualquer versão e/ou tradução está exposta ao "erro" de seus tradutores.

    No mais eu fico com a CFW, os textos nas linguas originais é que foram inspirados por Deus e a busca deve ser pelos textos (das traduções/versões) mais próximos deles.

    Sobre a preservação das Escrituras vou escrever algo, que a muito quero. É que esse texto já estava pronto e eu já havia me comprometido a postá-lo.

    No mas,
    Graça e Paz.

    Esli Soare3s

    ResponderExcluir
  4. Crislaine,

    Obrigado, volte sempre!

    Na Paz do Senhor Jesus.
    Esli Soares

    ResponderExcluir
  5. Esli e Jorge,

    Eu uso uma Genebra com a linguagem "Revista e Atualizada" (TC) , e gosto muito. Embora tendo uma ACF também.

    Pra dizer a verdade, uma das únicas que não suporto é a NTLH, que para mim, assim como disse o Jorge, não é Bíblia. O texto está todo mutilado pela "modernidade linguística", ou seja, pela tentativa de torná-lo de melhor compreensão.

    Já me preocupei muito com isso, agora não mais. Acredito que Deus "fala" aos seus em qualquer tradução.

    Esli, muda esse fundo preto que está doendo nos olhos. Suaviza um pouco... rsrsrs.

    Abraços!

    Ricardo

    ResponderExcluir
  6. Irmão Esli, parabéns pelo texto
    Você quebrou algumas idéias que eu tinha "prontas" na cabeça. Muito obrigado!

    Eu acho que parte da idéia de apoiar uma versão acima das outras chegando a dizer que ela é perfeita e todas as outras são impuras vem também do nosso orgulho, de lá no intimo querer ser/ter algo superior aos demais...

    Obs: Faltou você colocar o link do texto do site monergismo!

    Um abraço, Deus abençoe.

    ResponderExcluir
  7. Ah sim, a imagem de fundo ficou muito boa! ;)

    ResponderExcluir
  8. Ricardo (e ao Jorge, também, talvez - rsrs),

    A 'minha' Bíblia é a NVI (embora tenha um total de 10 de várias versões – o que eu considero, sinceramente quase nada, um dia terei a biblioteca dos meus sonhos... ta aí um bom tema “participativo”), só não uso ela mais porque nem todo mundo adota, mas sempre que posso... prefiro a clareza dela para fazer leituras coletivas.

    Mas quando vou estudar, a NVI é só mais uma versão/tradução. Usava o Bibleworks para ler em "várias bíblias" agora estou usando o E-sword e o The Word.

    Sempre que posso recorro ao grego (NA 26 e 27), e a LXX, mas procuro estudar o Hebráico e o Aramáico, também, e dou uma olhadinha – confesso – no TR e no “interlinear”. Uma outra coisa que faço as vezes e ver as possíveis variações gramaticais do português, conjuntamente com a análise em outra língua (+/-, o inglês – KJV, ESV, NIV, etc. e suas correlatas hispânica... estou tentando a vulgata!).

    Neto

    Dizia um velho cântico: "Que bom te vê por aqui..." Volte sempre!

    Que bom que esse texto serviu para vc pensar um pouco mais amplo, espero que os que se seguirão também o façam, mas o mérito é do Isáias Jr (inclusive orem por ele, questões de saúde), e o louvor é a Deus.

    Sem mais...
    Graça e paz


    Esli Soares

    ResponderExcluir
  9. Neto.

    Ah, sim... o link está aí no fim do paragrafo, mas eu ponho de novo http://www.monergismo.com/textos/bibliologia/colchetes-biblia_renato-fontes.pdf, vale conferir!!!

    Fique na paz.

    ResponderExcluir
  10. Pr. Esli,

    Excelente texto do Pr. Isaías. Li-o corridamente, mas vou voltar para um exame com a atenção devida.

    Em Cristo,

    Clóvis

    ResponderExcluir
  11. Olá Clóvis,

    Que bom a sua visita!

    Esse texto é acabou me levando a fazer outras pesquisa e estou preparando outros post.

    Na paz,
    Esli Soares

    ResponderExcluir

É sua vez de dizer alguma coisa! Será bom te ouvir (ou ler), mas lembre-se da boa educação.