No interesse de responder a essas e outras dúvidas, segue essa simples investigação bíblica circunscrita à análise textual histórico-gramatical, sem a necessidade de apelo a autoridades tradicionais ou imposição confessional. Trata-se de um silogismo básico. Um mínimo de coerência, de leitura e interpretação da Palavra, que por vezes apontará traços técnicos, sem, entretanto, recorrer ao tecnicismo ou academicismo.
TRAÇANDO O ERRO:
Argumentar que o nascimento de Jesus não foi extraordinário, não é nada. Ora, ninguém nasce ‘magicamente’, todos os humanos são frutos da fertilização de óvulos, de um jeito ou de outro, por espermatozoides. Literalmente é depois da junção dos gametas de um macho e de uma fêmea que um novo ser humano se forma. Logo, qualquer um que não crê na divindade de Cristo esposa essa ideia, mesmo que inconscientemente, afinal é o modo natural. Certamente Pilatos ao permitir a crucificação e, igualmente os líderes religiosos ou a multidão que pediu por Barrabás, jamais pensaram que Jesus não fora concebido naturalmente. Mas não é isso que a Igreja afirma.
Sobra para quem, por alguma razão, não tem coragem de romper totalmente com a Fé Cristã afirmar que a ideia do nascimento virginal de Jesus é uma invenção da Igreja Medieval, mantida ainda hoje pelos ‘fundamentalistas’. Certos, por diversas fontes, que a autenticidade histórica do texto bíblico é um fato inquestionável, o esforço é concentrado em demonstrar que o Novo Testamento não traz afirmações claras sobre a Natividade miraculosa ou, que no melhor dos casos, o Texto Sagrado abriga variações e discrepâncias entre os autores canônicos sobre o tema, tornando internamente plausível esse pensamento. E assim, a tese divergente fica de pé ou cai, a partir da demonstração ao menos de uma dessas proposições.
AFIRMANDO O ÓBVIO:
Os 4 Evangelhos, claramente reconhecidos como autoridade divina já para a Igreja primitiva, concordam quanto a procedência divina do Senhor Jesus, não havendo espaço aí para um revisionismo histórico-eclesial. Evidências internas de qualquer um dos 4 Evangelhos apontam essa reivindicação de Cristo. O próprio Jesus, mais de uma vez, fala sobre a sua preexistência e se afirma um com o Pai (João 10.30; 17.5). João, o mais longevo apóstolo original de Cristo, escreve mais poeticamente sobre essa divindade latente de Jesus (João 1.1-3,14).
Mateus e Lucas, que registram de modo efetivo e inconteste o nascimento extraordinário de Jesus (Mateus 1.18-25; Lucas 1.26-38), demonstram que a história textual do Evangelho, da Igreja e desta doutrina se confundem. O próprio Credo Apostólico, que remonta ao Didaquê (sec. I), afirma que Jesus nasceu da Virgem Maria. Ou seja, não se pode separar essa ideia sob pena de falsificar toda Religião Cristã Histórica.
É verdade que os textos dos Evangelhos datam da segunda metade do primeiro século, cerca de 30 ou 40 anos depois da morte ressurreição do Nosso Senhor. Mas antes disso implicar em uma ideia tardia, tal fato na verdade reforça a autoridade dos relatos. Especialmente considerando que a maioria dos livros do Novo Testamento foram escritos com uma diferença média entre 10 e 20 anos.
Lucas, autor do 3º Evangelho, que afirma diretamente o nascimento virginal de Jesus, diz nos primeiros versos de sua obra que muitos empreenderam uma “narração coordenada dos fatos que entre {eles} se realizaram”. Ou seja, além de se afirmar como testemunha, nos informa que esses fatos estavam sendo divulgados amplamente. Assim, não é razoável pensar que afirmações tão singulares, especialmente diante de inúmeras testemunhas oculares (1João 1.1), passariam despercebidas sem que isso causasse estranhamento na comunidade cristã primitiva. Mas não há evidências desse desassossego. Na realidade essa doutrina é mais antiga que os próprios Evangelhos.
TESTANDO POSSIBILIDADES:
Não somente os Evangelhos canônicos afirmam a origem divina de Jesus, essa ideia permeia outros textos do Novo Testamento. Isso fica evidente em todas as 13 cartas paulinas. Em Efésios 4, por exemplo, Paulo afirma que Jesus só subiu ao Céus, porque de lá ele desceu – um apontamento claro sobre a encarnação. Já em Filipenses 2.5-11, o apóstolo diz: “pois ele (Jesus), subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana”.
Em 1Coríntios 8.6, ele diz que “há um só Deus” para em seguida atribuir a expressão de laudação tipicamente divinal “Senhor” para Jesus Cristo, e afirmar que todas as coisas são do Pai e pelo Filho. Em 2Coríntios 5.19, o apóstolo diz que Deus estava em Cristo reconciliando o mundo, e em Filipenses 3.20 e 21 reafirma que “aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o nosso corpo de humilhação, para ser igual ao CORPO da sua glória, segundo a eficácia do PODER que ele TEM”.
Já em Colossenses 1.15 confirma que Cristo é “a imagem do Deus invisível”, e ao afirmar que Ele é o “primogênito de toda a criação”, apresenta Cristo como encarnado ou materializado. Igualmente em Colossenses 2.9 reafirma que “nele (em Jesus), habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade”, e sem medo de dizer que evidentemente, grande é o mistério, declama: “Aquele que foi MANIFESTO na CARNE foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória (1Timóteo 3.16)”, aludindo a toda trajetória do Filho até a Terra e de volta aos Céus.
Perceba, a origem divina de Cristo é um pressuposto claro do apóstolo Paulo, que afirma claramente a semelhança ou manifestação humana. Se ele acreditasse que Jesus era meramente um homem, ou se não sabia do nascimento virginal, por que insistir que um (mero) homem é semelhante ao homem? Que sentido faz afirmar que um homem é manifestado na carne (natureza humana)? Por que dizer que ele foi reconhecido em figura humana?
O autor de Hebreus aponta a divindade de Cristo em várias passagens (Hebreus 1.8-9; 1.10-12; 13.8). O apóstolo Pedro afirma que Jesus é Deus e Senhor em suas cartas (2Pedro 1.1,11; 2.20; 3.18). E o Livro de Apocalipse finaliza com qualquer dúvida sobre a divindade do Mestre (Apocalipse 1.17-18; 22.13), o que implica em seu nascimento (ou encarnação) diferenciado.
Todo o Novo Testamento anuncia isso claramente. E não é para menos, "Lucas, o médico amado" (Colossenses 4.14) e (Filemom 1.24), que mais tarde escreveria o 3º Evangelho, citado pelo próprio Paulo como um cooperador do seu ministério, é também o primeiro historiador da Igreja (Atos 1.1-3). Sua mensagem ressoa o próprio texto bíblico. É virtualmente impossível que a tese dele fosse desconhecida pelos outros autores do Novo Testamento.
Além de que, segundo o próprio Paulo, quando ele encontrou-se com os 12 apóstolos, incluindo Mateus, que também escreveria em seu Evangelho sobre o nascimento virginal de Jesus, e João, que afirmaria categoricamente a divindade do Bom Mestre, nada eles lhe acrescentaram (Gálatas 2.6), ou seja, “seu” Evangelho (2 Timóteo 2.8) era exatamente a mesma mensagem desses líderes, e isso naturalmente incluía o nascimento sobrenatural de Jesus.
DERRUBANDO FALÁCIAS:
No Evangelho de Mateus, lemos que “tudo isto aconteceu” – se referindo diretamente a concepção extraordinária de Jesus – “para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta” e categoricamente citando o texto do mais importante profeta para os judeus de seu tempo, o evangelista afirma que o nascimento de Jesus da Virgem Maria era o cumprimento da profecia registrada em Isaías 7.14 “Eis que a VIRGEM conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco)”.
E aqui é interessante, pois em hebraico, o profeta Isaías usou o termo עַלְמָה (ʿalmâ) e na versão em grego foi traduzido para παρθένος (parthenos). Embora, haja outras palavras em hebraico para descrever uma jovem mulher virgem, apta para gerar filhos e se casar, esse conceito de pureza é inequívoco no termo em grego utilizado, que literalmente significa virgem, uma pessoa do sexo feminino que nunca teve relações sexuais.
O termo usado em hebraico é etimologicamente diferente do termo usado na tradução do grego. Não é necessário falsear essa questão. Mas palavras são mais que sua etimologia. Contexto e sentido subjacente devem ser considerados, em especial quando numa tradução. Isaías apontava a capacidade da jovem mulher gerar filhos, num momento de desolação. O simples fato dela ser ou não virgem não é abordado, o caso se dá porque isso não era o foco do autor. Aí não reside nenhuma dificuldade textual a passagem, o termo usado em grego reflete apenas o sentido mais alto e ideal do conceito hebraico.
Argumentar que a tradução de um dos mais importantes textos proféticos dos judeus, feita por especialistas, que realmente utilizavam as duas línguas – afinal, a Septuaginta, a versão grega do Velho Testamento, foi contemporânea ao uso natural dos manuscritos originais em hebraico – está simplesmente errada, é de uma mediocridade arrogante.
Para além disso, os tradutores da septuaginta usaram παρθένος (parthenos) também para “jovem mulher” ou simplesmente “moça”, sem apontar exclusivamente a virgindade. Veja o exemplo em Gn 34.3, o mesmo termo grego é usado para traduzir נַעֲרָה (na`arah) que só significa serva ou jovem. Além do mais, pelo contexto, sabemos que por uma violência, Diná, não é mais, tecnicamente, virgem. E mais, Gn 24,16, os 70 sábios que traduziram o Velho Testamento do Hebraico para o Grego, usam na mesma frase a expressão παρθένος (parthenos) para traduzir dois termos hebraicos distintos נַעֲרָה (na`arah) e בְּתוּלָה (beṯû·lā(h)).
Ou seja, παρθένος (parthenos), que aparece 65 vezes na Septuaginta, é usado para traduzir pelo menos 4 termos diferentes em hebraico, termos que se referem a mulheres jovens, muitas vezes virgens, mas também pode ser utilizado de forma mais geral para se referir a mulheres ainda em idade de gerar filhos.
Seria no mínimo um abuso imaginarmos que os leitores originais do Velho Testamentos fossem incapazes de entender o sentido do texto. Mateus, que era um judeu, portanto falante de hebraico e provavelmente também de grego e latim, um homem letrado, contador ou publicano, que tinha uma mente necessariamente arguta, ágil, seria capaz de observar esse “erro grosseiro de tradução” das palavras, com muito mais qualidade que qualquer estudioso atual. Ou seja, ele usou o texto consciente dessa diferença etimológica.
Ademais, a doutrina não tem sua validação textual no evangelho de Mateus apenas. Lucas registra a Anunciação em seu livro no cap. 1.28-38. Esse trecho narra que o anjo Gabriel informou Maria que ela conceberia e daria a luz ao messias, pelo poder do próprio Deus. Lucas faz questão de registrar que Maria questiona o anjo sobre isso, por ser ela virgem, ao passo que lhe é esclarecido, essa concepção se daria pelo Poder do Espírito e da Sombra do Altíssimo, e finalizando o anjo diz que o aquele filho seria um ente santo. Então, pela lógica, antes de atribuir erro de tradução seria preciso insistir que Maria mentiu.
Enfim, todas essas passagens confirmaram que os autores bíblicos, direta ou tacitamente, acreditavam no extraordinário nascimento de Jesus. E na soma das evidências até aqui impõe-se que o nascimento de Jesus era, na visão dos primeiros Cristãos, a visitação divina prometida. E assim fica estabelecido, acima de qualquer dúvida que o Texto Sagrado inquestionavelmente afirma a doutrina do Nascimento Virginal de Jesus.
DÚVIDAS RAZOÁVEIS?
Mas em Romanos 1.3, só é possível supor que Paulo esteja sugerindo uma concepção natural para Jesus numa leitura descuidada. Analisado, com o mínimo de atenção, verifica-se que o verso não é nada além de confirmação de tudo o que já foi dito até aqui.
Importa para o caso a última parte da afirmação original: σπέρματος Δαυὶδ κατὰ σάρκα (spermatos Dauid kata sarka), que pode ser traduzida legitimamente como “descendência de Davi segundo a carne”. A expressão σπέρματος significa semente e por derivação óbvia, descendência – no Grego clássico é usado deste modo. Das 45 vezes que aparece no Texto Sagrado, mais de 80% das ocorrências significam descendência; apenas 8 ocorrências efetivamente apontam para semente e em nenhuma dela se quer é possível sugerir a ideia de sêmen.
Ora, que Jesus é da linhagem do rei Davi, não há dúvidas, tanto Maria quanto José (legalmente pai de Jesus – lembre-se que no recenciamento romano isso foi promulgado) eram de descendência davídica. E isso faz parte de todo o profetismo messiânico, que Paulo, como bom Judeu, fariseu de fariseu, conhecia muito bem.
Entretanto, se a intenção dele fosse mesmo afirmar que o nascimento de Jesus era fruto de um relacionamento natural – uma atitude sem sentido – ele teria dito σπέρματος Ἰωσὴφ, semente de José (o marido de Maria). Além disso, essa nem é a forma comum, bastava dizer υἱὸν ἐν τῇ Ἰωσὴφ, (filho de José).
E mais, na própria epístola, cap. 8.3-4, lemos Paulo afirmar que Jesus, o Filho de Deus é enviado em SEMELHANÇA de carne. Ou seja, já estava clara a sua fé no nascimento extraordinário de Jesus. Pois seu interesse é firmar que Ele é semelhante a nós, embora fosse essencialmente diferente de nós por ser o Filho de Deus (Romanos 15.6). O que obviamente também desmonta a possibilidade de que ele tenha mudado posteriormente de ideia, depois da feitura dos relatos Evangélicos – Se bem que a divindade de Jesus já é apontada nas carta do apóstolo Paulo aos Coríntios, os quais são textos mais antigos que o de Romanos, como demonstrado acima.
CONCLUSÃO:
Defender a possibilidade de alguém ser cristão sem necessariamente crer em traços distintivos da Fé Bíblica é uma profunda tolice. Faz parte de “ser cristão” sustentar certas afirmações que se negadas constituem um desvio tão gravoso que mais justo é ser considerado fora da cristandade. Não é mero dogmatismo, mas um apelo a lógica; afinal um triangulo não pode ter 4 lados ou um vegano não pode se alimentar de proteína animal. Isso é básico.
É assim com a ressurreição corporal e histórica ou antes com o nascimento virginal de Cristo. Afirmar que essas doutrinas são invenções posteriores da Igreja, e que tais crenças não existiam na mente dos primeiros cristãos, e, portanto, não fundamentais para a Fé, é literalmente negar a historicidade do cristianismo, sua lógica interna e suas afirmações mais caras.
A ideia de que Cristo foi apenas um homem e que seu nascimento tenha sido apenas mais um igual a todos os outros, não foi abraçada como uma possibilidade para o cristão já do primeiro século da era cristã. É só no sec. II que surgem os primeiros grupos cristãos propondo que Jesus era um ser humano comum, que fora adotado como Filho de Deus em seu batismo. Mas nem mesmo o herege Ário, que discutiu mais firmemente a plena divindade de Cristo, ainda no sec. III, ousou propor que o nascimento do Salvador tenha sido menos que extraordinário. Lembrando que essas heresias foram rechaçadas com o uso do Texto Bíblico – bastante emblemático – que a essa altura já era amplamente conhecido e tinha seu cânon finalizado.
Reedições modernas desses erros, não estão mais amparadas em silogismo bíblico, ou em melhor exegese que antes; nem mesmo ‘novas’ descobertas arqueológicas sustentam esses disparates. Tais posturas não devem ser tratadas como possibilidades, apenas “matizes de cristianismo”, mas sim como nada menos que apostasia, simplesmente.
Há uma necessidade teológica clara aqui, a expiação de nossos pecados só é possível se nosso Mediador for simultaneamente Deus e Homem.
Graças a Deus temos um sumo sacerdote dos bens já realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer, não desta criação, que, tendo-se oferecido uma vez para sempre, tirar os pecados de muitos, aqueles que O aguardam para a salvação.
BIBLIOGRAFIA
1. Rick Brannan, org., Léxico Lexham do Novo Testamento Grego (Bellingham, WA: Lexham Press, 2020);
2. Almeida Revista e Atualizada (Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993);
3. Kurt Aland et al., Novum Testamentum Graece, 28th Edition. (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2012);