Deus estabelece, do nada, tudo o que há (Gn 1;1). Esse Deus, supremo criador, passa a por ordem no caos (Gn 1, Sl 74) em proporções universais. Os relatos da Criação nos dois primeiros capítulos de Gênesis mostram uma organização, um controle diretivo e não somente potencial. Deus levou seis dias para criar o mundo. Toda a Criação, todas as coisas que existem, existiram ou existirão, foram
planejadas e projetadas por Deus ali naquele instante[1]
chamado eternidade. Todas as implicações, conseqüências, desdobramentos, foram
antevistos, perscrutados, analisados, compreendido e solucionados. Deus, antes do start do κόσμου, conheceu, predestinou, providenciou e
uniu em Si mesmo, todas as coisas, acontecimentos e possibilidades, começo,
meio e fim (cap. III, A Bíblia e o Futuro, Antony Hoekma, Cap. I, cânones de
Dort, I Co 2;7). Há um método, uma ordem, um motivo, há um propósito
.
Tudo que foi escrito deve ser entendido na
perspectiva humana, como um relato, a intenção é de contar a história para
alguém, e com isso formar algumas ideias. Gênesis é o início da revelação de
Deus e não o início do relatório científico[1]
da criação. Ao ouvir por que as coisas foram criadas, e por quem (יְהֹוָה Yehovah - IHWH - Jeová, Javé, Iavé ou Yahweh), é presumível, não só a admiração,
mas que um forte senso[2]
de cuidado seja instalado no coração do homem.
É exatamente por isso que ao questionar a afirmação
de Deus ter criado tudo, vemos expressões como “A Morte de Deus” ou “O Homem
que matou Deus” – afinal, sem um criador, somos órfãos, filhos de chocadeira,
“não há ninguém lá em cima que olhe por nós”.
Deus ao colocar no cânon, o Início (Gênesis), quer
com isso se revelar, não só como o Deus Único, criador de tudo e todos, mas também,
apresentar-se como o poderoso Deus que escolhe, institui e preserva o povo de Israel.
Gênesis tem o propósito de gerar naqueles que saíram da terra de escravidão uma
identidade nacional, transformando um bando de parentes em uma nação.
Uma nação só existe com o estabelecimento de um poder
– a Constituição, por exemplo, é o poder máximo do estado de direito – nos
tempos de Moises esse poder poderia ser um deus, um patriarca, um poder
militar, etc. algo que servisse de elo. Deus, através de Moises,
progressivamente estabelece esse Estado, reivindicando para si a autoridade
magma. Deus é em última instância o poder máximo da nação Israel, por isso é
nEle o valor de Israel como um povo (Is 41;8,14), o valor da nação reside em
Deus, o criador.
Embora Deus, o criador, é quem prometa a Abraão fazer
de sua descendência uma grande nação, e que o Pentateuco conte a saga dele e de
seus descendentes. Os 5 livros não foram escritos com o propósito final de
serem para o povo somente relatos históricos ou documentos do poder público (códigos
civis, penal, religioso, etc.). Os livros registram o estabelecimento de um
pacto, entre o Deus e o homem, IHWH e Adão. Por isso no V.T. não aparece a ideia
de Deus-Pai e sim de Deus-Criador. A relação é contratual, tem-se a descrição
das cláusulas do contrato (obediência, construção da arca, circuncisão, etc.) e
suas observações na vida. Aparentemente cumprindo todas as legalidades, alguém
poderia afirmar ser adorador de IHWH (Jo 8;31 a 47), com essa compreensão, que
é ainda limitada, veríamos os termos adoração, culto, liturgia, serviço
religioso, reverência e religião exatamente como os fariseus, somente como
normas, leis, regras, circunstâncias, festas e datas (Is 29;13). Nessa visão
estabelecer linhas diretas e negar qualquer desvio fica realmente muito fácil.
No pacto:
É imposto, então, clarificar no V.T. e no N.T., na
antiga aliança e na nova, a adoração, e na acepção pactual elaborar uma
compreensão ainda mais completa da Adoração Verdadeira, para então, de posse
dessa conceituação bíblica, progredir na proposta temática.
Dentro das doutrinas reformadas a relação entre
Criador e criatura é entendida como um contrato, um pacto. Com Adão no paraíso
foi assim. Deus criou o homem segundo a sua imagem e semelhança. Deus, o
Senhor, colocou Adão, o servo, no jardim do Éden para cultivá-lo e guardá-lo e
o orientou sobre como deveria ser o seu procedimento ali (Gn 2, 4 a 25) expondo
as consequências de violar essas condições.
A cláusula desse contrato que trata das punições (consequências)
do descumprimento de algum de suas partes (v.17), é exatamente o que obriga o
ser humano a uma vida distante de Deus, longe do paraíso, expulso da presença
divina, ou seja, o Pacto vigora! Com Noé (tipo de Cristo), como agente do
pacto, foi diferente[3],
a sua obediência o tornou uma benção para toda a criação. Com Abraão (outro tipo
de Cristo) também, ele creu e isso lhe foi imputado como justiça, e nele todas
as nações da Terra seriam abençoadas, a sequência dos patriarcas confirma essa
continuidade do Pacto com Adão (o homem).
Êxodo, então, passa a contar a libertação da
escravidão imposta pelos egípcios aos descendentes de Abraão – que é
descendente de Sen, filho de Noé, descendente de Seth, o filho de Adão, o
homem. O povo de Israel, por sua vez, é introduzido como agente desse pacto,
reafirmado por Deus, que passa sistematicamente a criar um Estado que vivesse
sob a égide dessa revelação. Todo o V.T. é baseado no cumprimento das cláusulas
que foram anunciadas por Deus no monte Sinai.
Ao considerar as revelações do N.T. (Novo Testamento)
sobre o Pacto no V.T. temos uma visão ainda mais clara de sua continuidade
proposital. Daí o sacrifício de Cristo, não só é a continuação pactual – como
foram Adão, Noé, Abrão, Moises, Davi, Salomão, Daniel, Esdras e etc. – como de
fato é o cumprimento pleno desse Pacto. É o sacrifício de Jesus que validou a
adoração sob a Lei (sacrifícios e correlatos) e o que valida a adoração da
Igreja (adoração atual). Nisso exclui-se a possibilidade de duas realidades ou
dispensações: Lei versus Graça. Há uma única verdade: por meio de Cristo,
todos, quer judeus, gregos, troianos ou goianos, são unidos a Deus, em Cristo,
e somente em Cristo pode-se adorar ao SENHOR (cap. XXI, CFW).
Adoração a Deus é um relacionamento proposto,
providenciado, mantido e possibilitado por Deus, e em última análise, consumado
por Cristo. O sacrifício de Jesus é o
que validou a adoração sob a Lei (sacrifícios e correlatos) é o que valida a
adoração da Igreja (adoração atual). Assim, exclui-se a possibilidade de duas
realidades ou dispensações. Há uma única verdade: por meio de Cristo, todos,
quer judeus, gregos, troianos ou goianos, são unidos a Deus, em Cristo, e
somente em Cristo pode-se adorar ao SENHOR (cap. XXI, CFW).
Analisando a resposta de Jesus ao questionamento sobre a validade do
culto tradicional dos samaritanos (Jo 4;21), tem-se uma ampla visão de como
para ele a adoração a Deus era central em seu ministério. A mulher, que por
‘acaso’ se encontra com Jesus no poço de Jacó, quer saber aonde era o local
certo para adorar (prestar culto) a Deus, no monte Gerezim, o local perto de
Sicar onde durante séculos os samaritanos
adoravam e ofereciam seus sacrifícios ou no Templo de Jerusalém.
Jesus desconsidera
essas duas possibilidades declarando que somente “em espírito e verdade” os
verdadeiros adoradores adorarão (se
submeterão) o Pai (Jo 4;23). É interessante perceber a introdução dessas
restrições[4] na adoração.
Cristo afirma que somente os verdadeiros adoradores adoram realmente ao Pai,
pois só eles O adoram em espírito e em verdade. É claro, que nesse contexto,
Cristo fala da inauguração do Reino da Graça, o tempo chegado aonde esse tipo
de adoração acontecerá, isso nos faz entender que a adoração verdadeira só é
possível através de Cristo (Cap.XVI, CFW).
É razoável pensar
que se existe a adoração em espírito e em verdade, existe, também, uma adoração
carnal e falsa. Cristo ao qualificar como espiritual e verdadeira a atividade
dos adoradores procurados por Deus (Jo 4;23) faz clara distinção destes com os
dois outros grupos em discussão.
Analisando esses
dois grupos, judeus e samaritanos, percebem-se alguns princípios que se
seguidos não faz automaticamente de alguém um adorador verdadeiro: historicidade. Ambos, judeus e
samaritanos, faziam o culto assim há tempos, era, não só, costume, mas também
cultura – claro que com pesos diferentes para cada grupo; prescrição. Para os judeus, o sacrifício no Templo era a clara e
inquestionável observação a Lei de Deus, embora, tanto essa “observação” como
essa “lei de Deus” tenha sido questionada pelo próprio Deus; localidade. Havia razões pelas quais se
adorava a Deus nesses locais: O monte Gerazim
foi palco de acontecimentos importantes da revelação Divina, e o Templo, embora
tenha sido até essa ocasião, refeito duas vezes, segue de alguma forma – “de
alguma forma” ideia melhor explicada mais a frente – a prescrição para ser o
Tabernáculo ou morada de Deus entre os homens; sinceridade. Seria imprudência nossa pensar que os samaritanos iam
ao monte adorar a outro deus, ou que o faziam sem algum grau de devoção, da
mesma maneira para com os judeus no Templo, embora houvesse ali às portas do
Templo, charlatães, especuladores e ladrões a grande maioria realmente tinha um
sentimento de religiosidade.
E importante,
ainda, recordar que Jesus não afirma que os samaritanos não adoravam a Deus, ao
contrário, eles O adoravam, só não conheciam! O rev. Russel Shedd (1987)
afirma que “Mais do que inútil é o culto que desconhece Aquele a quem devemos
submissão e lealdade. Por isso, o grau de beleza de um culto, o número de
adeptos, ou a sua antiguidade, não tem importância se o adorador não estiver em
contato vital como Deus único”. Por fim a
afirmação de Jesus “a salvação vem dos judeus”, provavelmente fazendo
referência as numerosas profecias do A.T. ao próprio respeito, trata do fato de
Deus revelar a salvação primeiramente a Israel (Rm 9;4) e não de qualificar
adoração dos Judeus como melhor ou mais aceita do que a dos samaritanos.
A adoração aceitável não está baseada em nenhuma
observância legalista. Homens como Abel, Enoque, Noé, Abraão, Moisés obtiveram
bom testemunho pela fé (Hb 11). Eles adoraram segundo os padrões de Deus, isto
é, de acordo com os mandamentos de Deus, esperaram contra a esperança e contemplaram
de longe o objeto da sua fé, pois eles entenderam que a promessa – remissão em
Cristo – era de uma pátria superior (v.16). Para eles não tinham sido entregues
os 10 mandamentos e nem as leis cerimoniais, eles não observavam datas e épocas
do ano e não havia um edifício consagrado ao Senhor. Eles obtiveram bom
testemunho pela obediência a uma lei maior, uma lei que deve ser, como foi para
este, o parâmetro para adoração da Igreja Cristã.
Cláusula primeira:
Jesus esclarece qual era essa lei maior. Quando
perguntado sobre qual era o maior mandamento, ele, afirma que a grande lei que
os homens devem seguir é amar a Deus de todo o coração. Ele não citou um dos 10
mandamentos, ele não considerou o decálogo como fonte do maior mandamento.
Cristo sita uma passagem de Deuteronômio 6;5. Para Jesus, a ordem maior que
Deus impõe ao homem é amá-lo e por isso servi-lo de todo o coração, de toda a
alma e de todo o entendimento.
Esse amor a Deus deve ser entendido como a acepção
verdadeira da adoração exigida e – claro – possibilitada por Deus (Ex 20;6).
Duas razões podem ser levantadas para sustentar essa afirmação: Cristo afirma
que essa é a Lei de Deus, o mandamento máximo divino, a razão pela qual os
seres humanos existem, o propósito da criação. Amar a Deus é o objetivo que o
Criador estabeleceu para o ser humano, é um decreto imutável do Senhor (item V,
cap. III CFW, livro I, cap. I, IRC). A segunda razão é teológica. A expressão
do ‘caput’ da lei prescrita é similar ao entendimento do encadeamento
etimológico[5]
abstraído no N.T. e na LXX.
O termo traduzido por amar é ἀγαπήσεις que foi
utilizado na LXX para traduzir o verbo אָהֵב אָהַב ('āhēḇ 'āhaḇ); do hebraico (cerca de 200 ocorrências). Esse termo
em hebraico foi utilizado para descrever o sentimento de Abraão pelo seu filho
Isaque (Gn 22;2), o amor de Jacó por Raquel, pelo qual trabalhou sete
anos (Gn 29;18), e a amizade profunda de Jonatas e Davi (I Sm 20;17). O verbo
traz a ideia do amor incondicional, altruísmo. A maior lei de Deus manda que ao
homem O ame mais do que a si mesmo, que considere o Senhor mais importante e
digno de atenção e reverência, o principal, o primeiro, a quem todas as coisas
devem ser oferecidas primeiramente, em detrimento de si mesmo, a despeito
inclusive de faltar para si.
Mas Jesus acrescenta que esse mandamento se traduz,
também, numa atitude de amor para com o próximo. Ele cita Lv 19;18, afirmando
que amar ao próximo como a si
mesmo é o segundo mandamento, semelhante (aquilo que se parece ou é próximo
de...) ao primeiro. Os mesmos termos são usados no segundo mandamento de Jesus. A segunda maior lei de
Deus é tratar o outro como a si, da mesma maneira que alguém si ama deve amar
ao outro, buscar o bem do próximo com o mesmo cuidado e determinação
dispensados na busca do bem para si mesmo. A ideia não é “meu direito acaba aonde começa o do outro”, forma passiva, mas “meu dever é o direito do outro”, forma
ativa. E mais, essa lei tem uma importância maior. Amar (ἀγαπῶν) ao próximo é mais importante que todos os outros mandamentos,
ficando diretamente abaixo de amar (ἀγαπῶν) a
Deus. Não se pode – não aqui – entender essa passagem de forma simplista. Jesus
não está simplesmente resumindo os 10 mandamentos em 2, como sugerida pela
explicação clássica – boa e correta, porém curta – de que “amar a Deus...” é o
resumo dos 4 primeiros mandamentos e “amar ao próximo...” dos 6 seguintes.
Cristo afirma, peremptoriamente, que estes dois
mandamentos são os que dão base a tudo que a Lei (Torah) regulamenta, e por
causa deles os Profetas trouxeram julgamento e condenação às nações (Is
1;2). Provavelmente os fariseus que
perguntaram a Jesus qual o maior mandamento, queriam usar a resposta dele como
arma para questioná-lo e por fim acusá-lo de falta para com alguma lei ou
interpretação da lei (Mc 14;55, Jo 8;6). Eles não estavam interessados em ouvir
uma hierarquização da Lei. Mas Cristo frustra seus intentos ao responde-lhe com
um conhecimento intrínseco da Lei (Lc 2;47), um conceito pétreo, fundante. O
amor (ἀγαπῶν) a Deus é o princípio da obediência (Jo
14;23). Entretanto, para Cristo, amar (ἀγαπῶν) ao
próximo é tão diretamente entrelaçado com amar (ἀγαπῶν) a
Deus que ele vê a necessidade de responder ao questionamento com afirmações
sobre um segundo mandamento semelhante ao primeiro.
O entendimento dessa realidade está espalhado nas
cartas paulinas, bem como nas cartas gerais. João coloca essa relação de amar
ao próximo como sinal do amor a Deus (I Jo 2;10, 3;10, 4;7,8,20,21), Tiago
afirma que uma fé em Deus sem obras é morta, para ele amar a Deus implicava
diretamente em amar aos semelhantes. Paulo passa a mostrar o mais excelente dos
dons, o amor (ἀγάπην), e é evidente que esse amor, poeticamente
apresentado, não é para com Deus. O amor ali apresentado é como deve ser a
expressão do nosso amor (ἀγάπην) para com o próximo.
O amor com que Deus nos amou é o padrão para amarmos
uns aos outros. O apóstolo ainda acrescenta que todos os atos feitos sem amor (ἀγάπην) são inválidos. Ele não afirma que os atos foram ruins, ou que
deveriam ser evitados. Ele afirma que essa liturgia ou religiosidade destituída
de amor (ἀγάπην) não tem valor nenhum por que está
destituída da essência de Deus. Se os atos mais profundos de devoção não
contemplarem, em amor, ao próximo, serão como um barulho, um som destituído de
sentido e de beleza, que rapidamente torna-se insuportável (Ap 3;16).
_____________________________
[1] Claro que em algum nível há uma precisão no
relato, a questão é que o propósito do texto de Gênesis não reside no
esclarecimento da mente humana e sim na revelação do Senhor.
[2] Na aterrorizante experiência do encontro de
Deus com Jó, a multidão de inquietantes razões que ele tinha, foram silenciada
e transformada em uma assombrosa e calma confissão de fé, “ainda que ele me
mate, nEle confiarei”; quando Jesus acalma a tempestade os discípulos percebem
admirados quem realmente era Jesus; a acusação apresentada por Deus contra o
povo escolhido, registrada no primeiro capítulo de Isaías, trata exatamente
disto: o boi conhece o seu dono e o jumento sabe quem o alimenta, mas o povo
dele não tem entendimento.
[3] A diferente reside na fé demonstrada pela
obediência de Noé ao construir a arca. Esse episódio é tipológico da obediência
de Cristo o novo Adão, mas a potência da salvação propiciada pela obediência de
Noé não é perfeita em comparação ao sacrifício de Jesus.
[4] As restrições são a espiritualidade e
veracidade da adoração prestada a Deus. Independente de qual for a
interpretação dos termos, fica claro que para Jesus só esse grupo em
particular, que adora em espírito e verdade, são adoradores de Deus (ver Jo 4;24).
[5] Uma referência ao primeiro capítulo.
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