por rev. Alan Rennê
Introdução
Há cerca de um mês um debate
acirrado tem movimentado a mídia e, principalmente, as redes sociais. Trata-se
da polêmica aprovação da menoridade penal[1] pela Câmara dos Deputados,
uma das casas legislativas do nosso país. A vasta maioria da população
brasileira se mostra favorável à redução da menoridade penal. No entanto, a
minoria contrária tem se empenhado numa cruzada tentando mostrar por que, na
sua visão, é um absurdo pleitear tal causa. Interessantemente, são muitos os
cristãos protestantes, inclusive de confissão reformada, que têm tomado parte
nas manifestações contrárias à redução.
Alguns têm agido de modo
semelhante à Associação Evangélica Brasileira, que no ano de 1993 escreveu um
documento – uma espécie de manifesto – no qual se posicionava de forma
contrária à pena de morte. O documento foi apresentado ao plenário da Câmara
dos Deputados e, posteriormente, reproduzido tanto em jornais como por várias
igrejas. De acordo com o Pb. Solano Portela, tal manifesto “foi escrito em
linguagem persuasiva, mas sem conter uma única citação das Escrituras”.[2] Semelhantemente, as razões
apresentadas pelos cristãos progressistas contrários à redução da menoridade
penal não são fundamentadas nas Sagradas Escrituras. Antes, tratam-se de
argumentos eivados de apelo emocional e de retórica muitos dos quais são, em
essência, os mesmos contrários à aplicação da pena capital: 1. A redução da
menoridade penal não vai resolver a causa da violência; 2. Existe muita desigualdade
social e injustiça na distribuição de renda em nosso país; e 3. Nossa sociedade
possui muitos males próprios. Outros argumentos apresentados são os seguintes:
1. É preciso que o Estado faça um investimento maciço em educação, lazer e
cultura, a fim de proporcionar um meio de escape aos nossos adolescentes e
jovens; 2. Nossos adolescentes já são penalmente responsabilizados[3]; 3. Reduzir a menoridade
penal é tratar o efeito, não causa; e 4. A fase de transição da adolescência
justifica o tratamento diferenciado.
Associado ao último argumento,
como uma espécie de fundamento, está o argumento da poda sináptica, que em
linhas gerais, nada mais é do que um processo neurológico pelo qual várias
sinapses são destruídas, a fim de se obter uma melhor regulação do sistema
nervoso. Educadores afirmam que, a poda sináptica “se relaciona com o período
crítico que o adolescente atravessa em seu desenvolvimento, caracterizado por
impulsos descontrolados, conduta desajustada e déficit cognitivo, que podem
levar a comportamentos de risco desnecessários, impulsivos e violentos”.[4] Uma vez que o adolescente
está atravessando tal processo, ele não pode ser penalmente responsabilizado
por seus atos. Trata-se de um argumento imbuído de determinismo biológico, algo
que pode ser facilmente refutado.
Não obstante, o meu propósito
neste pequeno texto não é responder a todos os argumentos supramencionados.
Antes desejo fazer uma apresentação da ética bíblica, ou seja, pretendo mostrar
que a Bíblia Sagrada, a inspirada, inerrante e autoritativa Palavra de Deus, a
única regra de fé e prática do cristão, requer que todo aquele que comete um
crime seja devidamente responsabilizado pelos seus atos não existindo,
portanto, nada que justifique o cristão posicionar-se de forma contrária à redução
da menoridade penal. Inicialmente, tratarei da ética cristã e seu fundamento.
Logo em seguida, apresentarei uma pequena teologia bíblica da aplicação de
castigos.
A Ética Cristã
De modo claro e direto, o
posicionamento ético, político e teológico dos cristãos nunca deve ser
alimentado e formado pela opinião pública e popular. Recentemente li o que um
jovem escreveu, no sentido de que o Brasil deveria olhar para os Estados Unidos
estão fazendo o caminho inverso ao da menoridade penal, investindo em formas de
acompanhamento e promoção de cidadania para os menores infratores. É
interessante que, na década de 90, quando a discussão girava em torno da pena
de morte, o mesmo tipo de argumento foi apresentado ao Pb. Solano Portela por
uma repórter da antiga revista evangélica Vinde.
Um dos argumentos utilizados por ela foi no sentido de que, “a maioria dos
países está deixando a aplicação da pena de morte”. A réplica do Pb. Solano foi
a seguinte: “Constatamos, também, que a maioria dos países abriga a pornografia,
aceita cada vez mais o divórcio e a dissolução familiar como normal, o
casamento entre homossexuais, e por aí vai. Nada disso significa que estas
coisas sejam certas em si – elas foram erradas e continuam erradas”.[5] Quanto a isso, basta
lembrar que dias antes da aprovação da redução da menoridade penal na Câmara
dos Deputados, a Suprema Corte americana aprovou a legalização do casamento
homossexual nos cinquenta estados daquele país. Assim sendo, os Estados Unidos
da América não são o referencial a ser seguido em nossas discussões éticas.
O posicionamento ético dos
cristãos também não pode ser formado por argumentos sociológicos positivistas –
que partem do pressuposto de que a natureza humana é intrinsecamente boa –,
cientificistas tendo como fundamento o determinismo biológico. Também não deve
ser formado por agendas influenciadas pelo marxismo cultural. É lamentável que
muitos jovens cristãos sejam profundamente influenciados por pensadores
esquerdistas, como por exemplo, o francês Michel Foucault, o queridinho dos
universitários progressistas.[6] Para Foucault, todas as
questões sociais nada mais são do que uma disputa pelo poder. Roger Scruton
afirma que, “o tema que unifica a obra de Foucault é a busca pelas secretas
estruturas de poder. Poder é o que ele deseja desmascarar por trás de toda
prática, de toda instituição e da própria linguagem”.[7]
Dessa forma, instituições como o
manicômio, por exemplo, são apenas manifestações do poder da burguesia sobre os
menos favorecidos: “Através do confinamento, a loucura é sujeita à regra da
razão: a loucura agora vive sob a jurisdição daqueles que são sãos, confinados
por suas leis, e orientados por sua moralidade”.[8] O mesmo se dá em relação à
prisão. A prisão, para Foucault, nada mãos é do que um tipo de segregação
imposta aos menos favorecidos por aqueles que são os detentores do poder. É daí
que surge a popular ladainha de que “apenas os pobres e negros serão
penalizados”. Para ele, a prisão é a negação ao outro do direito de existir.
Discorrendo sobre a diferença existente entre a aplicação de castigos em
séculos passados – que consistia em infligir dor ao corpo do indivíduo – e a
nossa época, Foucault diz o seguinte:
Mas, de modo geral, as práticas
punitivas se tornaram pudicas. Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e
para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. Dir-se-á: a prisão, a
reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de
domicílio, a deportação – que parte tão importante tiveram nos sistemas penais
modernos – são penas “físicas”: com exceção da multa, se referem diretamente ao
corpo. Mas a relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios.
O corpo se encontra aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer
intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade
considerada ao mesmo tempo como um
direito e como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num
sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento
físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O
castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos.[9]
Daí surge a ideia no pensamento
esquerdista de, não apenas a redução da menoridade penal, mas do
enclausuramento ou da prisão em si ser uma injustiça, visto que o
aprisionamento significa a negação de um direito fundamental do indivíduo. Em
outro lugar Foucault deixa explícita a sua concepção de que a prisão é, em sua
essência, uma imposição daqueles que são os detentores do poder sobre os menos
favorecidos do ponto de vista econômico-social. Para ele, a disciplina da
prisão nada mais é do que uma espécie de “tática de poder” intimamente
associada à acumulação de capital do mundo ocidental:
Se a decolagem econômica do Ocidente
começou com os processos que permitiram a acumulação do capital, pode-se dizer,
talvez, que os métodos para gerir a acumulação dos homens permitiram uma
decolagem política em relação a formas de poder tradicionais, rituais,
dispendiosas, violentas e que, logo caídas em desuso, foram substituídas por
uma tecnologia minuciosa e calculada de sujeição. Na verdade os dois processos,
acumulação de homens e acumulação de capital, não podem ser separados; não teria
sido possível resolver o problema da acumulação de homens sem o crescimento de
um aparelho de produção capaz ao mesmo tempo de mantê-los e de utilizá-los;
inversamente, as técnicas que tornam útil a multiplicidade cumulativa de homens
aceleram o movimento de acumulação de capital.[10]
De acordo com Roger Scruton, esse
tipo de afirmação de Foucault é uma explicação forçada e essencialmente
marxista: “Tais observações impulsivas são produzidas não por academicismo, mas
por associação de ideias, sendo a ideia principal a morfologia histórica do Manifesto Comunista”.[11] Além disso, é esse tipo
de pensamento que dá ensejo a duas ladainhas inculcadas nas massas e repetidas
de forma acrítica: 1. A que diz que apenas os adolescentes pobres,
marginalizados e negros serão afetados pela redução da menoridade penal; e 2. A
que diz que o próximo passo da agenda daqueles que são favoráveis à redução é a
privatização das prisões, a fim de contribuir com o acúmulo de capital por
aqueles que são os detentores do poder. Tais argumentos procedem de uma visão
de mundo não-cristã.
Isso nos conduz, então, à
consideração do que é a ética cristã e qual o seu fundamento. É comum o fato de
muitas pessoas crescerem em nossas igrejas sem a devida compreensão acerca da
ética cristã e suas implicações para o todo da vida humana. A ética, de modo
geral, diz respeito à conduta humana. A ética cristã, por sua vez, procura se
harmonizar com o padrão absoluto e divino da vontade de Deus revelada nas
Sagradas Escrituras. O objetivo da ética cristã é “relacionar um entendimento
de Deus com a conduta dos homens e mulheres e, mais particularmente, usar da
resposta a Deus que Jesus Cristo requer e torna possível”.[12] Em outras palavras, a
ética cristã nos diz como devemos ajustar a nossa conduta e a nossa forma de
pensar a respeito do todo da vida àquilo que Deus declara na sua Palavra. A
lógica é a seguinte: Tudo o que Deus fala nas Escrituras é verdade. Sendo
assim, qualquer forma de pensar e de agir que difira daquilo que está na
Palavra, por necessidade consequente, é falso e errado. Assim sendo, nossos
pensamentos e ações devem se ajustar à mente do Senhor revelada na Bíblia. Ron
Gleason, pastor americano e advogado faz a seguinte afirmação: “Isto quer dizer
que os cristãos estão obrigados a sujeitar-se à Escritura e, por esta, como o
padrão, avaliar todas as decisões e toda forma de conduta”.[13] O filósofo reformado
Gordon H. Clark disse o seguinte: “A ética calvinista é baseada na revelação. A
distinção entre certo e errado [se resolve] pela revelação de Deus nos dez
mandamentos”.[14]
Outro teólogo reformado, chamado Jochem Douma, disse: “Ética cristã é a
reflexão sobre conduta moral à luz da perspectiva oferecida a nós na Sagrada
Escritura”.[15]
Isto posto, é inadmissível que
numa discussão sobre qualquer assunto o cristão não fundamente as suas
afirmações nas Sagradas Escrituras. É simplesmente impensável que na discussão
a respeito da redução da menoridade penal os cristãos de confissão reformada se
baseiem tão somente em teorias seculares do direito, no positivismo e na
opinião pública. Então, é urgente compreendermos que somos chamados a pensar os
pensamentos de Deus a respeito de toda a realidade. De forma específica, somos
chamados a pensar os pensamentos de Deus a respeito da responsabilidade do
indivíduo por crimes por ele cometidos. O que fica claro é que a forma de
pensar da grande maioria dos evangélicos não está ajoelhada aos pés das
Sagradas Escrituras.
Da Aplicação de Punições nas Sagradas Escrituras
Discutir a aplicação de punições
a adolescentes por crimes praticados só faz sentido quando aceitamos, de
início, a existência do conceito de autoridade e sua relação com a punição.
Como salienta o Dr. John Frame: “O castigo dá validade prática ao conceito de
autoridade. Uma autoridade não pode funcionar bem se não houver consequências
para aqueles que a desobedecem”.[16] O conceito de autoridade está
intrinsecamente embutido na ordem criacional. Ao criar o homem segundo a sua
imagem, conforme a sua semelhança, Deus concedeu-lhe o exercício da autoridade
para subjugar e dominar a criação (Gênesis 1.26-28), além de ordenar o
funcionamento da vida em sociedade. Uma vez compreendido isso, não há como
escapar da conclusão de que a aplicação de punições a todo transgressor das
leis estabelecidas por aqueles que exercitam legitimamente a autoridade é algo
sem o qual a sociedade não poderá funcionar de maneira ordeira. É preciso
afirmar que os contrários à redução da menoridade penal não são contrários à
aplicação de punições aos “menores infratores”. De acordo com eles, o que deve
ser posto em prática é o que já está estabelecido no famigerado Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O grande problema está no fato de o ECA propor apenas aquilo que é denominado
de medidas socioeducativas. Tais medidas partem do pressuposto de que o
propósito primário da punição deve ser a recuperação/educação dos “menores
infratores”.
É interessante que, visando
responder à pergunta “Por que punimos aqueles que desobedecem à autoridade?”,
John Frame argumenta que existem seis motivos diferentes para a aplicação de
punições: 1. Desencorajamento; 2. Reforma; 3. Restituição; 4. Restrição; 5.
Tributação; e 6. Retribuição. Recomendo que o leitor leia a exposição que o Dr.
Frame faz de cada um desses motivos.[17]
É preciso destacar, todavia, que
o segundo motivo – reforma – é
aquele que ocupa o ideário daqueles que são contrários à redução da menoridade
penal. Frame diz o seguinte sobre a reforma como a motivação para a aplicação
de punições àqueles que desobedecem às leis: “Neste caso, não punimos Josh para
desencorajar outros na sociedade, mas para o seu próprio bem. Aqui o objetivo
do castigo é fazer Josh se tornar uma pessoa melhor, de modo que ele não cometa
novamente esse crime”.[18] É por essa razão que o
ECA preconiza a aplicação de medidas socioeducativas aos “menores infratores” o
que, ao menos na teoria, deveria ser realizado pelas instituições de
internamento de menores. A ideia é que a educação é a chave para o
aprimoramento do “ser social” em construção, a saber, o adolescente. Isso também
explica a massificação do slogan #ReduçãoNãoÉSolução.
Quando nos voltamos para as
Escrituras, a fim de observar de que maneira ela lida com o ideal de reforma
através da aplicação de punições, é possível perceber que ela limita tal
motivação à disciplina eclesiástica e ao castigo dos nossos filhos. No primeiro
caso, encontramos o apóstolo Paulo ordenando o seguinte à igreja de Corinto: “Eu, na verdade, ainda que ausente em
pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se
estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor
Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com
o poder de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás para
a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo
no Dia do Senhor Jesus” (1Coríntios 5.3-5). O propósito de Paulo é
que, como resultado dessa disciplina, o praticante do incesto seja salvo, de
modo que ele não venha a sofrer dano maior, ou seja, o castigo eterno. Assim, a
motivação por trás da aplicação dessa punição específica é a reforma do
pecador. No segundo caso – o castigo dos nossos filhos –, está escrito em
Provérbios 22.15: “A
estultícia está ligada ao coração da criança,
mas a vara da disciplina a afastará dela”. O pastor presbiteriano
escocês James Bannerman disse o seguinte: “A disciplina, em todas as suas
aplicações, fora da sentença de excomunhão, deve ser considerada, com respeito
ao ofensor, como terapêutica, em vez de punitiva – um meio de promover, através
de cuidados especiais doloridos e rigorosos, não a destruição, mas a edificação
do ofensor”.[19]
Não há, todavia, nenhuma passagem na Bíblia que sugira que a reforma deve ser a
motivação ou o fim pretendido quando da aplicação de punições a criminosos.
Uma melhor motivação para a
aplicação de punições é a do desencorajamento.
Esta motivação também pode ser denominada dissuasão.
Aqui a sociedade, por meio do Estado, pune um criminoso com o objetivo de
desencorajar os demais cidadãos. A punição serve, então, como uma lição para o
restante da sociedade. Assim se expressa Frame a respeito do desencorajamento:
“Punimos ladrões com a esperança de dissuadir outros de roubar. Fazemos o mesmo
quanto a assassinos, sonegadores de impostos e caluniadores”.[20] Em Deuteronômio 13 está
escrito que, caso um israelita adore outros deuses, ele deve ser apedrejado até
a morte (vv. 6-10). O versículo 11 apresenta o propósito do desencorajamento: “E todo o Israel ouvirá e temerá, e não se
tornará a praticar maldade como esta no meio de ti”. Quando consideramos a
disciplina eclesiástica podemos perceber que ela também possui o propósito de
dissuadir os demais membros de uma igreja local de cometerem o mesmo pecado
daquele que está sendo apenado. Assim, uma igreja precisa ser fiel na
administração da disciplina eclesiástica, dentre outras razões, para que outras
pessoas sejam desencorajadas a pecar contra o Senhor.
Uma crítica corretamente feita ao
motivo do desencorajamento é que é possível cometer abusos na aplicação de uma
punição e, assim, torná-la injusta. John Frame diz o seguinte: “Se a restrição
é a única consideração, pode-se justificar o castigo de pessoas inocentes pelo
seu valor como dissuasão”.[21] Outro fator que deve ser
levado em consideração, dessa vez tanto em relação ao desencorajamento quanto à
reforma, é que ambos os motivos estão sujeitos aos caprichos dos penalogistas.
Mais uma vez John Frame é de grande auxílio aqui:
Se um penalogista visa primariamente ao
desencorajamento, ele tenderá a tornar o castigo o mais duro possível, para
maximizar seu efeito no público em geral. Se, por outro lado, ele favorece a
reforma, ele provavelmente planejará castigos mais brandos; talvez um regime de
punição e incentivo que não apenas restrinja o mau comportamento mas também
incentive o bom.[22]
Para citar apenas um exemplo
envolvendo punições que visam reformar o criminoso, basta lembrar dos jovens
Liana Friendenbach e Felipe Caffé, que foram brutalmente assassinados por um
adolescente conhecido como “Champinha”. Não há como chegar à conclusão de que
justiça foi feita no exemplo em questão. O que pode ser percebido aqui, é que
nem o desencorajamento nem a reforma são elementos motivadores adequados para
discutir a punição de crimes em geral e, de modo específico, o modo como
adolescentes que cometem crimes devem ser punidos.
Dito isso, quando se observa
atentamente os princípios absolutos estabelecidos pela Palavra de Deus o
elemento da retribuição aparece como
a motivação mais adequada e justa quando da consideração da aplicação de
castigos. Quando se considera a retribuição como ensinada pela Bíblia é
possível chegar á conclusão de que defender que menores de 18 anos sejam
devidamente punidos de acordo com os crimes cometidos está em plena harmonia
com a cosmovisão cristã.
A retribuição estabelece o
princípio de que um homem deve ser punido simplesmente porque ele merece. No
caso, um adolescente que comete um crime hediondo deve ser punido de acordo com
a gravidade do seu crime. Isso está
solidamente fundamentado na lei de Deus no Antigo Testamento: “Mas, se houver dano grave, então, darás vida
por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura
por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe” (Êxodo 21.23-25); “Se alguém causar defeito em
seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: fratura
por fratura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado
a algum homem, assim se lhe fará. Quem matar um animal restituirá outro;
quem matar um homem será morto” (Levítico 24.19-21).
Duas observações que precisam ser
feitas a respeito das passagens citadas acima são:
- A
chamada lei do talião expressa nos textos de Êxodo e de Levítico não têm o
propósito de ensinar que aquele que sofre algum mal tem o direito de se
vingar do ofensor ou criminoso. Hoje em dia é comum citar o “olho por
olho, dente por dente” como sendo uma espécie de refrão justificador da
vingança ou relatiação. Muito pelo contrário, o que está enfatizado aqui é
o princípio da justa retribuição ou da punição isonômica. Deus não está
autorizando a vingança. Ele estava controlando “os excessos”. A vingança é
proibida ao ofensor, por exemplo, em Romanos 12.17-19: “Não torneis a ninguém mal por mal;
esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens; se possível, quanto
depender de vós, tende paz com todos os homens; não vos vingueis a vós
mesmos, amados, mas daí lugar à ira; porque está escrito: A mim me
pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor” E mais do que
isso, Deus também estava estabelecendo o princípio de que uma punição não
pode ser muito indulgente[23], ou seja, ela não
pode ser exageradamente fraca. Como exemplo disso, Deus não aprova que um
assassino serial (Serial Killer) cumpra míseros 30 anos de pena. Trata-se
de uma pena muito fraca ou muito indulgente. O mandamento “olho por olho, dente por dente”
ensina a equidade e a justiça na aplicação da pena. Por conseguinte, se um
homem chegasse a cegar alguém, ele não deveria se morto por isso. Antes,
seria “olho por olho”. Se ele
viesse a arrancar um dente de outra pessoa, como pena, deveria perder um
de seus dentes. O castigo era sempre equivalente à ofensa, sem jamais
excedê-la, ou mesmo sem jamais ficar aquém do delito cometido. Era sempre
igual. Nem mais, nem menos.
- O
princípio da retribuição não pode ser descartado de maneira apressada sob
a alegação de que o mesmo faz parte da lei do Antigo Testamento, não tendo
mais nenhuma relação com a nossa época. O princípio da retribuição é
ensinado nas Sagradas Escrituras desde o início, logo no Gênesis: “Se alguém derramar o
sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o
homem segundo a sua imagem” (9.6).[24] Verifica-se, pois,
que a retribuição é contemplada pelo Senhor antes da outorga da lei por
intermédio de Moisés.
Como destacado por John Frame,
assumimos a validade e a necessidade da retribuição na aplicação de punição a
criminosos porque “assumimos que há uma ordem moral objetiva no universo” e
que, de acordo com ela, um homem – não importa quem ele seja, qual a sua
situação econômica e social, sua cor da pele ou mesmo a sua idade – precisa ser
punido quando comete um crime.[25] Frame afirma ainda que,
“obviamente, numa cosmovisão cristã, a fonte dessa ordem moral objetiva é o
Deus trino. À parte dele, não há base para essa ordem moral ou qualquer outra”.[26] No caso de Gênesis 9.6,
por qual razão a punição precisa ser a morte? Porque uma vida foi tirada e esta
vida fora feita segundo a imagem de Deus.
É interessante que o referencial teórico dos cristãos
progreesistas/esquerdistas contrários à redução da menoridade penal não é a
Escritura. Pelo contrário, o fundamento epistemológico de tais cristãos pode
ser encontrado no ECA, em Michel Foucault, em Émile Durkheim e na Psicologia
Comportamental. A Palavra de Deus sequer é mencionada. Não há uma única
passagem citada. Quando muito, apela-se para generalizações retóricas que falam
do amor de Jesus que restaura e reforma o pecador
.
.
Uma Palavra Final
A defesa da redução da menoridade penal não pode ser identificada como um
estímulo à barbárie, como desonesta e comumente é feito por pessoas
ideologicamente comprometidas com a esquerda. A barbárie seria estimulada se,
conjuntamente, houvesse a defesa da ideia de que cada cidadão tem o direito de
fazer justiça com as suas próprias mãos. Não é esse caso! Como já foi afirmado
aqui, as passagens bíblicas que tratam da retribuição têm justamente o objetivo
de impedir que os ofendidos e as vítimas tomem vingança contra os ofensores e
os criminosos. A administração das punições não foi entregue a indivíduos. Deus
entregou a execução dos castigos aos magistrados, aos líderes do povo,
os juízes, os príncipes. Em outras palavras, a execução dos castigos pertence
ao Estado. Consideremos Deuteronômio 19.21, outra passagem que apresenta a lei
do talião: “Não o olharás com piedade:
vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”. Os
versículos 17 e 18 mostram que os juízes, não as vítimas, eram os responsáveis
pela execução da pena: “então, os dois
homens que tiverem a demanda se apresentarão perante o SENHOR, diante dos
sacerdotes e dos juízes que houver naqueles dias. Os juízes indagarão bem; se a
testemunha for falsa e tiver testemunhado falsamente contra seu irmão”. A
lei é executada pelos magistrados, por aqueles que foram encarregados por Deus
de zelar pela lei e pela ordem entre os indivíduos.
Isso está em pleno acordo com o papel do Estado e das autoridades conforme
exposto pelo apóstolo Paulo, em Romanos 13.3-4: “Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim
quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás o
louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem.
Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a
espada; pois é ministro de
Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal”. A função do Estado,
conforme apontada por Paulo, não é colocar menores que cometeram crimes sob o
regime de internação para o cumprimento de medidas socioeducativas. Antes, o
Estado deve proteger os bons cidadãos e punir, castigar aqueles que fazem o mal,
independentemente da idade.
[1] Uso o termo “menoridade” em vez do
popular “maioridade”. Atualmente, é o menor de 18 anos que é inimputável. A
discussão gira em torno da redução dessa idade para os 16 anos. Assim sendo, do
ponto de vista técnico-jurídico é preferível falar em redução da menoridade
penal, uma vez que, como esclarece o Dr. Valdinar Monteiro de Souza, advogado
especialista em Direito Constitucional: “maioridade penal é o período de vida
do ser humano imediatamente posterior à menoridade”. Se deseja-se falar em
maioridade, que se fale na ampliação da maioridade penal. Cf. Valdinar Monteiro
de Souza. “Redução da Maioridade, ou da Menoridade Penal?”.
.
[2] F.
Solano Portela. A Pena Capital e a Lei
de Deus. São Paulo: Os Puritanos, 2000. p. 10.
[3]
É importante frisar o tipo de responsabilidade penal atribuída atualmente aos
adolescentes brasileiros. Como salienta o Dr. Valdinar Monteiro de Souza:
“Conforme a lei, menor não comete crime,
pratica ato infracional e, por conseguinte, pratique ele o ato mais hediondo ou
escabroso, não será criminoso, será menor infrator. Não importa se tem 15,
16, 17 ou – o que é mais acintoso – 17 anos, 11 meses, 29 dias e algumas horas.
Azar da vítima!”. Ao cometer um ato infracional, o adolescente é submetido a
medidas socioeducativas. Cf. “Redução
da Maioridade, ou da Menoridade Penal?”.
[4] .
[5] F.
Solano Portela. A Pena Capital e a Lei
de Deus. p. 12.
[6]
A designação de Michel Foucault como sendo um pensador esquerdista não é
descabida. Há quem possa se levantar e afirmar que Foucault não pode ser
elencado como esquerdista, uma vez que ele sempre foi crítico do marxismo. Não
obstante, o filósofo Roger Scruton diz o seguinte: “Escolhi Michel Foucault, o
filósofo social e o historiador das ideias, como o representante da esquerda
intelectual francesa. Deve ser ressaltado, ademais, que a posição de Foucault
foi constantemente cambiante e que ele mostra um sofisticado desprezo por todos
os rótulos disponíveis. Ele é também um crítico (embora, até seus últimos anos,
um crítico um tanto quanto calado) do comunismo moderno. No entanto, Foucault é
o mais poderoso e ambicioso daqueles que buscaram ‘desmascarar’ a burguesia, e a posição da esquerda foi substancialmente
reforçada por seus escritos”. Cf. Roger Scruton. Pensadores da Nova Esquerda. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 59.
[7] Ibid.
[8] Ibid. p. 61.
[9] Michel
Foucault. Vigiar e Punir: Nascimento da
Prisão. 42. Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014. p. 16. Ênfase
acrescentada.
[10] Ibid. p. 213.
[11] Roger
Scruton. Pensadores da Nova Esquerda.
p. 68.
[12] Sinclair Ferguson e David F. Wright
(Eds.). Novo
Dicionário de Teologia. São Paulo: Hagnos, 2011. p. 393.
[13] Ron
Gleason. Vida por Vida: A Pena de Morte
no Banco dos Réus. Brasília: Monergismo, 2014. p. 20.
[14] Gordon
H. Clark. “Ética Calvinista”. In: Carl Henry. Dicionário de Ética Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2007. p. 231.
[15] J. Douma. Responsible Conduct: Principles of Christian Ethics. Phillipsburg,
NJ: P&R Publishing, 2003. p. 13.
[16] John
M. Frame. A Doutrina da Vida Cristã.
São Paulo: Cultura Cristã, 2013. p. 660.
[17] Ibid. pp. 661-664.
[18] Ibid. p. 661.
[19] James Bannerman. A Igreja de Cristo: Um Tratado sobre a
Natureza, Poderes, Ordenanças, Disciplina e Governo da Igreja Cristã.
Recife, PE: Os Puritanos, 2014. pp. 661-662.
[20] John
M. Frame. A Doutrina da Vida Cristã.
p. 661.
[21] Ibid. p. 663.
[22] Ibid.
[23] Vincent Cheung. The Sermon on the Mount. Boston, MA: Reformation Ministries
International, 2004. p. 90.
[24]
Gênesis 9.6 ensina, em primeiro lugar, a validade da pena capital mostrando que
a mesma também não é um produto do tempo em que Israel era uma teocracia.
Todavia, a discussão acerca da pena capital será deixada para outra ocasião.
[25] John
M. Frame. A Doutrina da Vida Cristã.
p. 662.
[26] Ibid. pp. 662-663.
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